28 de maio de 2011

CRÓNICA SEM TÍTULO

Depois de já ter redigido a habitual crónica para dois semanários regionais – um da Beira Interior e outro do Algarve – (graciosamente, entenda-se), não encontro apetência para um novo título.

Não quero dizer que as ideias não venham a surgir, mas não há título.

Também não é por qualquer apatia para com a revista “Ecos da APAE”. Pudera! Foi fundada por minha iniciativa aquando da presidência nesta associação de que muito prezo.

E, mais uma vez, repito, foi esta a primeira associação a constituir-se no país, no género, segundo a informação do então ministro da Educação, que foi convidado para as comemorações centenárias da Escola Campos Melo – o malogrado professor doutor José Augusto Seabra.

Efectivamente, no seu englobamento estão os antigos professores, os antigos alunos e os antigos empregados, considerando assim a massa humana da instituição de prestígio que foi a Escola Industrial e Comercial Campos Melo da Covilhã.

Hoje é a prestigiada e centenária Escola Secundária Campos Melo, com os pergaminhos oriundos da sua centenária idade, e dos obreiros que a fortificaram, com a sua sapiência.

Ainda há dias, no facebook, escrevi no mural de Eugénia Melo e Castro – a Geninha – ; neta do antigo Director da Escola, Ernesto de Melo e Castro, e filha do poeta e escritor, com o mesmo nome; recordando-a, de tenra idade, na Escola Campos Melo, tendo a mesma respondido: “Que máximo, bons tempos aqueles lá na Covilhã, uma vida que dificilmente se consegue descrever…beijinhos”.

As notícias de quantos já passaram para o outro lado da vida trazem-me ao pensamento aqueles antigos colegas, companheiros de jornada e amigos que nos deixaram um legado de coisas importantes durante a sua vivência.

E, então, ou as preservamos e damos continuidade, ou deixamo-las passar para o lado do esquecimento e do desprezo.

Desses tempos da nossa juventude, académicos e do primeiro emprego, e em período de serviço militar obrigatório de então, com guerras coloniais, sobressaíam alguns colegas que sempre tiveram uma veia de expressão cultural, preservando a mesma nas conversas de amigos, mantendo interesse pela actualização de conhecimentos, e, como eu, adorámos ter uma biblioteca particular.

No espaço temporal das nossas vidas seguimos rumos diferentes, onde cada um assentou arraiais, e, duma forma mais concreta, nas suas próprias terras de origem, surgindo também ocupações diferenciadas.

Outros, encontraram a sua radicação noutros pousos, onde acabaram por se sentir naturalizados pelo coração.

E, quem gosta de memórias, por vezes consegue irmanar-se em redor de uns mais afoitos para encetarem a liderança na organização de encontros de amizades antigas.

Desses convívios, por vezes únicos para alguns, duradoiros para outros, resultam, quantas vezes, no reencontro de pessoas que já não se abraçavam há três ou quatro décadas.

É no encontro de antigos alunos, como de antigos associados de uma colectividade, ou de antigos combatentes, como, até, de amigas de longa data, de uma determinada rua, com seus maridos, como surgiu há uns meses, da Travessa do Viriato, em S. João de Malta, da Covilhã, reunidos em Abrantes.

Mas também há amizades especiais, oriundas dos tempos da nossa Escola Campos Melo, cujos temas e interesses se reforçam no dia a dia, através de telefonemas ou por via da Internet, referindo temas da cultura em geral, das memórias, ou na permuta de informações, obrigando a estarmos positivos.

Há dias chega às minhas mãos o livro “Porto – naçom de falares”, de Alfredo Mendes, simpática oferta do meu amigo e associado da APAE, Fernando Dias Pedrosa Gonçalves, a residir em Gondomar.

É um amigo atento e sempre presente, com aquele humor e boa disposição, a par da Ana Maria, sua mulher, sendo visita indispensável em sua casa quando passo pelo norte. E, os dois casais, lá vamos confraternizar, e, “como manda a lei”, fazer umas visitas e aproveitar os pratos tripeiros de nosso agrado.

Há poucos dias, quando regressava a casa, à noite, fui confrontado com um telefonema inesperado do meu amigo Fernando Pedrosa, já passava das vinte e três horas. Parei o carro no Largo de S. João de Malta para lhe transmitir umas dicas sobre a forma como actuar contra o condutor da moto que acabava de atropelar sua filha, que seria hospitalizada com alguma gravidade. Felizmente que já está em recuperação e a sua neta conseguir safar-se do acidente.

Volto-me agora para o “Porto – naçom de falares” que me faz recordar aquilo de que eu sempre gostei de falar – dos usos e costumes das nossas terras portuguesas.

Se, por estas bandas temos a nossa característica de linguajar, mormente em determinadas freguesias rurais – “Bonda! Não deites mais farelo aos bácoros!” ; “Fui à Fazenda p’ra mor de pagar a décema”; “A comida não está semenos”; “Atão, bota mais água” –; já nas zonas fronteiriças, como o Souto, Aldeia da Ponte e Sabugal também existem outras características na forma popular de se exprimirem – “Dá-me esse cavaco para pinchar o lume” ; “Vê aqueles homens empinados na camioneta?”, entre outras formas de expressão.

O Porto é aquela região sobejamente conhecida em todo o Portugal. Quando se juntam as gentes do País logo ressaltam os tripeiros com a sua força e o seu dialecto inconfundíveis, na tradicional troca do V pelo B, tão ridicularizada por gente de fora, mas a que Garrett soube retorquir:

“Se na nossa cidade há muito quem troque o b por v, há muito pouco quem troque a liberdade pela servidão”.

É interessante recordar o passado nortenho, e em “Porto – naçom de falares” memoriza os “catraios da rua a jogar a bola de trapos e a pedir um tostão à mãe para ir comprar um pirolito à Lindinha”.

Pois, “(…) sejam alcunhas, sejam frases compostas por palavras e emprego pouco frequente ou cujo sentido é utilizado de modo diferente do registado nos dicionários, ou é estranho à própria etimologia, estes falares são bairristas”.

Estas “pitadas de humor, ora sujeito às mais álacres invectivas (…) apoquenta-se o ouvidor quando lhe ressoam nos tímpanos os ecos de carroceiro, normalmente amortecidos pela usança; de contrário, pimenta na língua, ora pena capital nas altas e esconsas masmorras da escandaleira”.

“O chamado palavrão, o designado indecoroso, a peculiar rusticidade encarnam, na maior parte dos casos, outro sentido, outra intenção, diametralmente oposto ao que, a priori, qualquer forasteiro pode supor. O aplauso, o afago, o desejo, a admiração pontificam onde, em outros poisos nacionais, é tido como insulto, crítica, repúdio, ódio”.

Com o engenho e arte e doutas sapiências, “resultou então dessas errâncias, desses múltiplos contactos directos em ruas e vielas, avenidas, bairros sociais, salões nobres, tascos, colectividades culturais e desportivas, clubes privados, mercados, jardins, galerias, pescarias à linha e transportes públicos, um contributo modesto para os especialistas aprofundarem, queiram eles”, segundo a opinião de Alfredo Mendes, autor de “Porto – naçom de falares”.

“(…) Ao conviver com os pulsares da cidade, foliões, dramáticos, trágicos, remansosos, belicosos, enfadonhos, mobilizadores, meigos e sangrentos, permitindo-me um permanente assimilar de contos e ditos de empanzinar o mais desbarrigado”.

“Depois, valores mais altos se levantam: o reinventar de expressões, o apropriar da gíria, do calão e… da brejeirice, da natural ordinarice que, no Porto e concelhos vizinhos, tantas, tantas vezes leva o timbre da afectividade, que não o estigma da ofensa ou do insulto, tornando-se mesmo um código de amistosos relacionamentos (…)”.

(…) Auto-proclamando-se “cabouqueiro da língua, o mestre sustentou que o calão começou por ser uma língua de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carniceiro e algoz, do conspirador contra o juiz do tirano”.

E, nem mesmo quando os nortenhos se exprimem da forma como segue, “exultava eu perante um povo com os tomates no sítio, cachaporrada nos poderosos e suas pitanças e, ó desilusão!”, se conseguem os nossos intentos.

Vejam como os portuenses se acostumam, como normal das suas condutas, no seu linguarejar: “(…) Certa espalha-brasas sai a terreiro encarniçada contra maridos apanascados, badamecos sem emenda. (…) A matronaça bate a mão direita nas partes nadegueiras e, altissonante, para o que lhe havia de dar! (…) Ele é muito meu. Até já tenho calos dos tomates dele”.

Pegando nos termos nortenhos que me inspiraram – embora continue a não encontrar um título para esta crónica – recordo a conversa entre um colega alentejano e outro portuense: “Ah, porra, que já não m’alembrava de te dezer…oficialmente, casei três bezes. Isso mesmo, três bezes”.

Entremeando a brejeirice ou modos de falar nortenhos, com um pouco do que se passa por este nosso Portugal à beira-mar plantado, e, globalmente maltratado, podem-se memorizar facetas das nossas gentes, mesmo urbanas, ainda que nos meios rurais se verifique mais essa tal brejeirice, e que, duma forma ou doutra, adicionaram páginas ao anedotário da região, ou aos costumes de uma época, formando uma parte das estórias para a história regional.

Recordo, na minha meninice dos anos cinquenta do século passado, irritações de mulheres que brotavam vozes sequiosas do insulto, nas frequentes zangas familiares ou de vizinhança.

Da Pousadinha, a norte da Borralheira (designado Bairro de S. Vicente de Paulo) e, ali para o Beco das Lages, a Santa Maria, nos anos cinquenta do século passado, de feliz memória (mais abaixo, na Rua das Rosas, salvo erro, vivia a família numerosa Seabra), dei conta desse linguarejar fora do meio nortenho – quem é que não assistiu a tantas destas facetas?

E, já fora do comum dos cumprimentos dos dias de hoje, recordam-se quando o professor do Liceu da Covilhã, Dr. Leite de Castro, nos anos sessenta do século passado, cumprimentava as senhoras, com elevada educação? Pois tinha por costume beijar as mãos às damas, curvado com notória elegância.

E, como muito mais haveria para contar, e “Ecos da APAE” encheria as suas páginas, vou mesmo terminar, sem que antes agradeça, mais uma vez, ao meu amigo Fernando Pedrosa, a oferta do livro “Porto – naçom de falares”, excelente meio de inspiração para esta crónica sem título.

Termino com esta: “Em um palco ao ar livre, mesmo de costas para o rio Tua, um cantor das redondezas pulou, berrou, esperneou, ajoelhou, o que ele entoou amores pegadiços, furtivos, traiçoeiros, caprichosos, invejosos, enquanto umas jovens ruivas de corpinho quase, quase ao léu se bamboleavam de maneira a espicaçar a libido à assistência boquiaberta da Princesa do Tua”. Um atrevido lança umas bojardas e, acto imediato, um dos responsáveis pelo espectáculo responde:

- “Bocê desculpe, por acaso fizeram algum mal, carago?”

Por isso, termino como comecei, e pergunto ao meu amigo João Mugeiro: Por acaso tens que levar a mal porque não dei título à minha crónica, carago?

In Ecos da APAE”, no dia 28 de Maio de 2011


Em cima: o antigo professor da Escola Industrial e Comercial Campos Melo, Engº. Ernesto Melo e Castro, escritor, com a filha Eugénia Melo e Castro - ''Geninha Melo e Castro'' - conhecida no mundo da canção.
Em baixo: Geninha Melo e Castro partindo o bolo do aniversário dos 100 anos da Escola Campos Melo, ao lado do então Ministro da Educação, Professor José Augusto Seabra, já falecido.



Os primeiros convívios da APAE Campos Melo, com alguns sócios já falecidos.

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